O papel tem futuro
Para o escritor Nicholas Basbanes, que pesquisou a história dos meios
de conservar a escrita, ele continuará a ser importante, porque jamais será
substituído
AMANDA POLATO
http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2013/12/o-papelb-tem-futurob.html
RENOVAÇÃO
Montagem com diferentes tipos de
papel: o Alcorão no século VII, o códice de Gutenberg, ascensão dos jornais e o
sulfite. Ele mudou, mas ainda é essencial (Foto: Reprodução) "A sociedade sem papel está se aproximando, queiramos ou não. Não
podemos enterrar a cabeça na areia. Podemos escolher ignorar o mundo
eletrônico, mas isso não fará diferença”, escreveu o cientista da informação
Frederick Wilfrid Lancaster em... 1978. Ao lado de outros entusiastas do futuro
digital, ele previa um mundo maravilhoso com grande variedade de obras à
disposição dos estudantes, menos impressões e redução de custos. Bibliotecas
inteiras caberiam numa mesa. Quem não se adaptasse a tempo e abandonasse o
papel viveria uma transição caótica. Trinta e cinco anos depois, muito do
futuro imaginado por ele se concretizou. Mas o papel ainda persiste.
As bibliotecas continuam abarrotadas. Os livros impressos convivem com
a popularização dos e-readers e tablets. “Usar um não significa descartar o
outro”, afirma o escritor Nicholas Basbanes, autor do livro recém-lançado On
paper (No papel), sem edição no Brasil.
Num momento em que se discute o futuro do papel e até sua eventual
extinção, o livro de Basbanes tenta explicar sua importância e a maneira como
ele influenciou o curso da história. Bibliófilo, ele investigou a origem do
papel e seus diferentes usos. Conversou com pesquisadores, donos de indústrias,
bibliotecários e até pessoas que ainda fazem papel à mão, como há 2 mil anos. A
longa jornada pela história do papel convenceu Basbanes de que a supremacia do
papel tem raízes profundas – e será impossível substituí-lo.
>> Biblioteca Pública Digital da América, uma nova Alexandria
Basbanes diz que os livros não
se tornarão obsoletos tão cedo, porque são os mais simples e confiáveis meios
de preservação. Dispositivos eletrônicos e softwares estão em constante
mudança. Aquilo que foi registrado num formato específico hoje pode não ser
lido amanhã. “Já segurei nas mãos um livro com mais de 500 anos. Você pode
dizer, com segurança, que o mesmo acontecerá com uma obra criada
digitalmente?”, diz Basbanes.
Grandes acervos históricos não
abrem mão do papel. Nos Estados Unidos, o Arquivo Nacional encomendou folhas
super-resistentes para ajudar a preservar documentos originais, como a
Declaração da Independência, a Constituição e a Carta dos Direitos. O
responsável pelo trabalho foi Timothy Barrett, do Centro do Livro da
Universidade de Iowa, que registra e resgata técnicas milenares de fabricação
de papel à mão. “Estamos nos movendo em direção a um mundo digital holográfico
maravilhosamente fascinante, mas, ironicamente, nesse ambiente, os documentos
em papel em certos casos se tornarão mais importantes, e não menos
importantes”, diz.
>> O livro digital chega à escola. Quais são as vantagens para
professor e aluno?
Dois mil anos de reinvenções (Foto: Austrian Archives/Corbis)
É inegável que a tecnologia altera hábitos, mas as características
únicas do livro tradicional dão a ele muitos anos a mais de vida. A tecnologia
não conseguiu substituir algumas das vantagens do papel. Ele pode estar sempre
à disposição nas estantes e ser exibido em reuniões sociais. Nos livros, há o
contato com textura mais macia. É possível manipular as páginas, sobrepô-las ou
dobrar as pontas para se concentrar em outras partes. As palavras não competem
com alertas de aplicativos, mensagens que sempre pulam nas telas ou com o link
para o filme sobre a obra no YouTube, como acontece nos tablets e smartphones.
A demanda por papel tem caído em
algumas regiões, como América do Norte e Europa. As grandes indústrias atribuem
isso à estagnação econômica e ao avanço da tecnologia. As preocupações com o
meio ambiente também resultam no menor uso de papel. Mas não é possível dizer
que o setor viva um retrocesso. Foram produzidos 400 milhões de toneladas de
papel em 2012, em comparação com os 399 milhões no ano anterior.
Esses milhões de toneladas têm
os mais variados destinos.
A Associação Britânica de Historiadores do Papel
registra mais de 20 mil usos atualmente. Há empresas que investem em papéis
especiais, selos, cartões-postais, jogos de cartas e outros nichos de mercado.
Há usos tradicionais que perduram. Em qualquer parte do mundo, ninguém consegue
se identificar oficialmente sem usá-lo. É uma tradição que começou nos tempos
medievais. As pesquisas de Basbanes revelam que o papel, tão barato, abundante
e portátil, tornou a burocracia possível e contribuiu para a expansão dos
árabes pelo Oriente Médio, pelo Norte da África e parte da Europa. A papelada cresceu
ainda mais com a Revolução Francesa, em 1789, quando o poder deixou de ficar
concentrado no rei e foi distribuído aos funcionários públicos, que deviam dar
provas escritas dos serviços feitos.
Ainda hoje, os governos exercem
seu poder de controle por meio de uma série de regras, cumpridas apenas com a
apresentação de documentos, protocolos e termos impressos. A burocracia criou
duas classes de pessoas: as que têm papéis e as que não têm. Na França, os
imigrantes ilegais são justamente conhecidos como sans papiers (sem papéis). Os
Estados também não conseguiram reduzir o uso do papel em suas atividades
diárias. Em mais de dois séculos de atividade, o Arquivo Nacional americano
acumula 80 bilhões de papéis oficiais – e apenas 5% de todo o volume produzido
no último ano foi para as prateleiras.
Nas empresas, o inconfundível
barulho das impressoras não deixa dúvidas de que o amplo uso de computadores e
e-mails não livrou os profissionais das folhas. No início dos anos 2000, os
pesquisadores Abigail J. Sellen e Richard H.R. Harper publicaram o livro The
myth of the paperless office (O mito do escritório sem papel). Diziam que a
internet aumentou as impressões em 40%. Para quem previa que a tecnologia
acabaria com o papel, é um dado embaraçoso.
Previsões sobre o mundo digital
também já mostraram que nossas carteiras ficariam sem notas. É verdade que o
papel-moeda perdeu importância. Dá para notar no dia a dia que é possível
comprar praticamente tudo com transferências bancárias e cartões de débito e crédito.
Num futuro próximo, os celulares cumprirão boa parte dessa função. No entanto,
números de Bancos Centrais mostram que a fabricação de notas e moedas não
começou a cair. Na Zona do Euro, elas representam 9% das transações, mas o
total em circulação sobe ano após ano. Em 2012, havia E 876,8 bilhões fora dos
bancos, cerca de 2% a mais que em 2011, segundo o Banco Internacional de
Compensações. Em alguns países, como a
Suécia, há esforços para acabar com as notas. Alguns estabelecimentos não
aceitam notas, como pubs e pequenos negócios. A solução, aparentemente moderna,
prejudica moradores de zonas rurais, que não têm cartões. O mesmo vale para os
Estados Unidos. Segundo o empresário Douglas Crane, que fornece papel para as
notas de dólares, 20% dos americanos não têm conta bancária. O papel-moeda
também é fundamental para imigrantes. Mesmo com grandes inovações relacionadas
à carteira eletrônica, é difícil imaginar algo tão simples e anônimo quanto um
pedaço de papel, que permite operações fora do sistema bancário. As altas taxas
cobradas pelos bancos também desestimulam o uso do crédito e débito para
compras pequenas. O avanço das moedas eletrônicas esbarra ainda na segurança. A
quebra de um código poderia significar a reprodução de dinheiro indefinidamente.
Até agora, não foi inventado nenhum sistema infalível. Mesmo que um novo
sistema surja e convença todos (inclusive os excluídos) a trocar as carteiras
por celulares, isso acabaria com apenas uma utilidade do papel. Restariam ainda
19.999.
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