Olá pessoal, a Revista Seleções, que leio desde que tinha 8 anos, publica histórias muito interessantes e lindas de vida, gostaria de postar algumas aqui. Espero que a revista não se importe, estou postando com todos os créditos.
Abdel Sellou, o retrato de um intocável
Como a improvável amizade entre um
vigarista carismático e um aristocrata francês mudou para melhor a vida dos
dois
Por Liliane Charrier
Abdel Sellou nunca esquecerá aquele primeiro encontro. O aviso da
agência nacional de empregos chegou numa manhã chuvosa de dezembro de 1994, em
Paris, e requeria que ele se candidatasse a uma vaga: “Auxiliar e companheiro
para tetraplégico”. Abdel nem se deu ao trabalho de ler até o fim. Para ele,
era sempre a mesma coisa: conseguir que assinassem o aviso para provar que fora
à entrevista.
Com 23 anos, ele já cumprira 18 meses de prisão por furto e assalto.
Depois, arranjara emprego numa pizzaria e ficara tão entediado que fez todo o
possível para ser demitido. Ele não tinha escrúpulos de se beneficiar do
sistema. Durante dois anos, conseguiria ganhar quase tanto dinheiro quanto se
trabalhasse.
A entrevista era na Avenue Leopold-‑II, Paris 16, uma região próspera da capital francesa. Na entrada de
uma grande mansão, instalada num hectare de jardins verdejantes, Abdel ficou
um instante parado. Então, num interfone embutido no muro de pedra, disse:
– O anúncio de emprego, para auxiliar e tudo mais, é aqui?
– Entre, senhor – respondeu o dono de uma voz cortês.
Uma entrada para automóveis, depois outra. Abdel finalmente percebeu
que não estava na sede de uma empresa, mas numa residência particular. A casa
era tão grandiosa – quadros de grandes mestres, cômodas de estilo imperial com
puxadores dourados, mesas marchetadas de pé central – que o deixou sem fala.
Com o jeans desbotado e o paletó puído, ele não combinava com a decoração.
Quando o homem na cadeira de rodas indicou que podia se aproximar,
Abdel o olhou de cima a baixo.
– Bom dia, pode assinar aqui? – perguntou Abdel. – É para o
seguro-desemprego.
Sem se perturbar, o homem na cadeira de rodas respondeu:
– Não está vendo? Não posso fazer nada sozinho. Sou tetraplégico e
preciso de alguém que me ajude e me acompanhe por toda parte.
Philippe Pozzo di Borgo sentiu nesse rapaz rude um toque de selvageria
que o encantou. Ele precisava ser sacudido, não inspirar pena.
– Está interessado? – perguntou a Abdel.
Interessado? Isso seria ir longe demais. Porém, assim como aquele feixe
de infortúnio diante dele, condenado para sempre à sua cadeira de rodas, o
rapaz não tinha nada a perder.
Abdel Yamine Sellou tinha 4 anos quando trocou a Argélia por Paris para
morar com tio Belkacem e tia Amina, que não tinham filhos e se tornariam seus
novos pais. Não era raro que famílias árabes do Norte da África dessem filhos a
parentes que não podiam tê-los. Ele foi com o irmão Abdel Ghany, um ano mais
velho. Seriam criados num país onde teriam de aprender uma nova língua, num
apartamento de três quartos num conjunto residencial no bairro parisiense de
Beaugrenelle.
Os pais adotivos não impuseram restrições. A porta estava sempre
aberta. Abdel dava ordens aos novos pais para obter o que queria. Ninguém o
impedia de assistir ao filme das noites de domingo nem verificava se chegava
atrasado à escola ou fazia o dever de casa. E ninguém queria saber onde estava
quando saía para furtar o supermercado da esquina. Ele aproveitou ao máximo a
liberdade que lhe davam.
Qualquer desculpa valia para suas falcatruas: forçar crianças menores a
lhe entregar os tênis novos na escola, servir-se diretamente das prateleiras do
supermercado e de lojas esportivas sem passar pelo caixa e até furtar a câmera
fotográfica de turistas americanos que faziam fila na base da Torre Eiffel.
Uma, duas, 20 vezes Abdel foi levado para a delegacia. Assim que fez 18 anos,
foi parar na prisão de Fleury-Mérogis.
Mas nada preparara o rapaz sem lei para passar os dias tomando conta de
um inválido. Cruzar os braços de Philippe sobre a barriga para fazer o sangue
circular, empurrar seu peito para a frente, carregá-lo até a cadeira, esticar
seus membros, arrumá-‑los
direito, calçar-‑lhe os
sapatos.
Abdel passou a morar na casa e cuidava de Philippe desde bem cedo pela
manhã. Reunidos quase por acidente, pouco a pouco Abdel começou a desenvolver
afeição por aquele homem deficiente. Como escreveu na sua autobiografia: “Diante
desse homem que tinha generosidade de espírito para rir, vi que havia mais a
nos ligar do que apenas trabalho. Nada a ver com contratos ou obrigações
morais. Ele abriu os meus olhos para um mundo que eu pensava odiar: o mundo
daqueles que têm tudo.”
Até a queda de parapente que o deixara tetraplégico em 1993, Philippe,
descendente da grande aristocracia francesa, fora um dos diretores da
prestigiada Casa Pommery, produtora de champanhe. Agora, como não podia mais
praticar atividades físicas, o intelectual esclarecido e amante das artes
passou a apreciar ainda mais as atividades do intelecto. Abdel passava horas
virando milhares de páginas de livros intermináveis.
“Que tijolos são os seus livros”, disse-lhe Abdel e, com ar travesso,
acrescentou: “Seriam perfeitos para derrubar um policial!”
Abdel passara mais tempo aprendendo nas ruas do que na escola, mas,
mesmo assim, começou a dar olhadelas furtivas para ler sobre o ombro do patrão.
Na atmosfera silenciosa da mansão na Avenue Leopold-II, aos poucos ele também
começou a mergulhar nos romances da biblioteca.
– Abdel, ponha para mim a palavra DESPADRADO na vertical, por favor. –
À noite, Philippe adorava jogar palavras cruzadas. Abdel fez o que pediu, meio
sorrindo, meio se queixando.
– DESPADRADO não existe! – protestou. – Isso é desesperado escrito
errado.
Philippe prontamente o corrigiu.
– Despadrado é o padre que deixa a batina e volta a ser leigo.
Mau perdedor, Abdel pegou o dicionário para conferir. A sutileza de um
vocabulário diferente lhe parecia tão entediante quanto as noites na prisão,
nas quais, para matar o tempo, contava os quadrados do teto.
Em 2000, quando Philippe começou a escrever o livro O segundo suspiro,
uma surpresa o aguardava. Abdel, que nunca escrevera nada, ofereceu-se para
anotar o que Philippe ditasse. O patrão ficou contentíssimo: “Nada de problemas
tecnológicos!” Hoje, Abdel admite: “Com Pozzo, ganhei 20 anos de estudo.”
Abdel, que também era motorista, às vezes tomava liberdades com o carro
do patrão tarde da noite. Certa ocasião, quando a polícia apareceu à porta,
Philippe cobrou de Abdel: “Então, Abdel, quer dizer que você acabou com o
Jaguar?” Abdel não tentou negar o delito. “Eu lhe disse, senhor, aquele carro
era perigoso. A gente não nota a velocidade em que está andando”, disse como
desculpa. Depois, acrescentou, envergonhado: “Tudo bem, errei uma curva. Aqui
estão as chaves. Foi só o que sobrou.”
Em 2002, encarregado de organizar a festa de 18 anos do afilhado de
Philippe, Abdel convidou uma dançarina de strip-tease. “Você não faria isso com
o seu próprio filho!”, zangou-se Philippe.
E, quando soube que Abdel, conquistador incorrigível, deixara na beira
da estrada uma mulher que começou a lhe aborrecer, Philippe o repreendeu
vigorosamente: “Mulheres não são mercadoria. Elas têm de ser admiradas e
respeitadas! Você vai descobrir quando tiver uma esposa, e se sentir pronto a
lutar por ela.”
A cada travessura, Philippe tentava levar o protegido de volta ao
caminho certo.
Abdel ficou 10 anos com Philippe. Em 2004, os dois partiram para Saïda,
na extremidade nordeste do Marrocos. Philippe buscava o clima ideal para seu
corpo enfraquecido. Abdel, como sempre, estava de olho num novo projeto que
pudesse animar a vida dos dois. Lá, não muito longe da Argélia onde Abdel
nascera, eles discutiram a construção de um parque temático na praia.
Embora o projeto nunca chegasse a se realizar, Abdel se interessou pela
bela recepcionista do hotel onde se hospedaram. Ela se chamava Amal e causava
em Abdel a mesma sensação engraçada – como se estivesse nu – que tivera ao
chegar à casa de Philippe pela primeira vez. Quando andava pela praia com Amal,
ele se sentia desajeitado e meio bobo. “Abdel, gosto de você”, ela lhe disse,
tomando a iniciativa, “mas se me quiser terá de se casar comigo.”
Philippe observava a distância e recordou depois: “No dia em que vi
aquele machista de braço dado com Amal, aceitando como era capaz de ter
decência e ternura, entendi que algo importante estava acontecendo.” Abdel
sentia o mesmo. “Se Philippe não tivesse cruzado meu caminho, Amal teria sido
apenas uma conquista sem futuro, como as outras.”
Hoje, Abdel, 42 anos, mora em Paris com a mulher, Amal, e os três
filhos, Abdel Malek, Salaheddine e a pequena Keltoum. “Eles nasceram em 5/5,
6/6 e 7/7. Viu como sou ótimo em matemática?”, brinca ele. Quando não está em
Paris, Abdel fica em Djelfa, na Argélia, onde cuida da sua fazenda de criação
de galinhas.
Hoje Philippe mora em Essaouira, no Marrocos, com Khadija, a segunda
esposa. Quando visita Paris, o casal se hospeda com Amal e Abdel no apartamento
de três quartos no 15º distrito. Os anfitriões dormem na sala e deixam o quarto
para os hóspedes. “Desse jeito posso cuidar dele”, explica Abdel.
Philippe continua a ser o “mestre Jedi” de Abdel. Fora o fato de não
morarem mais juntos, nada mudou entre eles.
“Sempre conversamos sobre tudo, nenhum assunto é tabu. Histórias sujas,
histórias tristes. Ele me ofereceu sua cadeira de rodas para empurrar como se
fosse uma muleta para me apoiar. Ainda a uso assim até hoje.”