Gaiolas e asas
Rubem Alves
Os pensamentos chegam-me de um
modo inesperado, sob a forma de aforismos. Fico feliz porque sei que,
frequentemente, também Lichtenberg, William Blake e Nietzsche eram atacados por
eles. Digo atacados porque eles surgem repentinamente, sem preparo, com a força
de um raio. Os aforismos são visões: fazem ver, sem explicar. Pois ontem, de
repente, este aforismo atacou-me: Há escolas que são gaiolas. Há escolas que
são asas.
Escolas que são gaiolas
existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados
são pássaros sob controlo. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde
quiser. Pássaros engaiolados têm sempre um dono. Deixaram de ser pássaros.
Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros
engaiolados. O que elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos
pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o
voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser
encorajado.
Esse simples aforismo nasceu
de um sofrimento: sofri, conversando com professores em escolas. O que eles
contam são relatos de horror e medo. Balbúrdia, gritaria, desrespeito, ofensas,
ameaças… E eles, timidamente, pedindo silêncio, tentando fazer as coisas que a
burocracia determina que sejam feitas, como dar o programa, fazer avaliações…
Ouvindo os seus relatos, vi uma jaula cheia de tigres famintos, dentes
arreganhados, garras à mostra – e os domadores com os seus chicotes, fazendo
ameaças fracas demais para a força dos tigres.
Sentir alegria ao sair de casa
para ir à escola? Ter prazer em ensinar? Amar os alunos? O sonho é livrar-se de
tudo aquilo. Mas não podem. A porta de ferro que fecha os tigres é a mesma
porta que os fecha com os tigres. Violento, o pássaro que luta contra os arames
da gaiola? Ou violenta será a imóvel gaiola que o prende? Violentos, os
adolescentes? Ou serão as escolas que são violentas?
As escolas serão gaiolas? Vão
falar-me da necessidade das escolas dizendo que os adolescentes precisam de ser
educados para melhorarem de vida. De acordo. É preciso que os adolescentes, que
todos tenham uma boa educação. Uma boa educação abre os caminhos de uma vida
melhor. Mas eu pergunto: as nossas escolas estão a dar uma boa educação? O que
é uma boa educação? O que os burocratas pressupõem sem pensar é que os alunos
ficam com uma boa educação se aprendem os conteúdos dos programas oficiais. E,
para testar a qualidade da educação, criam mecanismos, provas e avaliações,
acrescidos dos novos exames elaborados pelo Ministério da Educação.
Mas será mesmo? Será que a
aprendizagem dos programas oficiais se identifica com o ideal de uma boa
educação? Sabe o que é um “dígrafo”? E conhece os usos da partícula “se”? E o
nome das enzimas que entram na digestão? E o sujeito da frase “Ouviram do
Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante”? Qual é a
utilidade da palavra “mesóclise”? Pobres professores, também engaiolados… São
obrigados a ensinar o que os programas mandam, sabendo que é inútil. Isso é um
hábito velho das escolas. Bruno Bettelheim relata a sua experiência com as
escolas: Fui forçado (!) a estudar o que os professores decidiam que eu deveria
aprender. E aprender à sua maneira.
O sujeito da educação é o corpo, porque é nele
que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as
ordens. A inteligência é um instrumento do corpo cuja função é ajudá-lo a
viver. Nietzsche dizia que a inteligência era a ferramenta e o brinquedo do
corpo, Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender ferramentas,
aprender brinquedos. As ferramentas são conhecimentos que nos permitem resolver
os problemas vitais do dia-a-dia. Os brinquedos são todas aquelas coisas que,
não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma.
Nessas duas palavras,
ferramentas e brinquedos, está o resumo da educação. Ferramentas e brinquedos
não são gaiolas. São asas. As ferramentas permitem-me voar pelos caminhos do
mundo. Os brinquedos permitem-me voar pelos caminhos da alma. Quem está a aprender
ferramentas e brinquedos está a aprender liberdade, não fica violento. Fica
alegre, ao ver as asas crescer… Assim todo o professor, ao ensinar, deveria
perguntar-se: Isso que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo? Se não for, é
melhor pôr de parte. As estatísticas oficiais anunciam o aumento das escolas e
o aumento dos alunos matriculados. Esses dados não me dizem nada. Não me dizem
se as escolas são gaiolas ou asas.
Mas eu sei que há professores
que amam o voo dos seus alunos.
Há esperança…
Rubem Alves
Gaiolas ou AsasA arte do voo ou a busca da alegria de aprender
Porto, Edições Asa, 2004
(excertos adaptados)
Fonte: http://contadoresdestorias.wordpress.com/2012/02/19/gaiolas-e-asas-rubem-alves/
Nenhum comentário:
Postar um comentário